quarta-feira, 7 de julho de 2010

Devendo a alma

Nas Minas Gerais, endividados que jurassem inocência ficavam livres do débito. Mas corriam o risco da perdição eterna
Cláudia Coimbra do Espírito Santo
Está afogado em dívidas e não sabe como se livrar delas? Simples: basta jurar pela sua alma que não deve nada. Foi o que fez, em 1744, Alexandre Cunha Matos, acusado pelo sargento-mor Luís Mendes Cordeiro de ter comprado, fiado, “um relógio de algibeira e uma cabeleira”. Em juízo, o réu “pôs as mãos nos Santos Evangelhos” e jurou “que não devia ao autor coisa alguma”. Que fez o juiz? Absolveu o réu e ainda condenou o credor a pagar as custas do processo.
Na época da mineração, o “juramento d’alma” funcionava de verdade. Mas se ninguém entra em um negócio para ter prejuízo, por que então se emprestava dinheiro em bases aparentemente tão frágeis? Em primeiro lugar, porque sem empréstimos a economia simplesmente não andava. Em segundo, porque a religiosidade era algo levado muito a sério. Em terceiro, porque a divulgação do juramento em falso poderia comprometer novos créditos.

A descoberta do ouro, no início do século XVIII, provocou rápido crescimento da atividade comercial na Colônia. O problema é que toda a riqueza ia parar “infalivelmente nas mãos dos mercadores, comboieiros, oficiais e traficantes”, como alertou ao rei D. João V o ouvidor Caetano da Costa Matoso (1715-?). Aos demais moradores, diante da escassez de moeda, restava comprar fiado, empenhando sua palavra para conseguir o adiantamento de mercadorias e serviços.
Não cumprir o pagamento podia render cobranças na Justiça. Constava nas Ordenações Filipinas (1603), base do direito português, que, ao ser convocado, o réu tinha a oportunidade de fazer um juramento: ou confessava a dívida e era condenado a quitá-la, ou a negava e ganhava a absolvição. Em jogo, estava nada menos do que sua alma.

Nas Minas Gerais, a mentalidade católica permeava as relações políticas, econômicas e sociais. Céu, inferno e purgatório eram realidades bem palpáveis. Os olhos e ouvidos dos membros da comunidade vigiavam, denunciavam e condenavam. Sem falar na própria consciência, que colocava os habitantes sob o constante dilema entre encaminhar sua alma para a salvação ou arriscar perdê-la para sempre.


Desde a Idade Média, a teatralização do mundo sagrado era reforçada pela Igreja por meio das imagens sacras. Como a maioria da população não sabia ler, a arte se tornou a “bíblia dos iletrados”, uma grande aliada na transmissão da doutrina religiosa.

Em muitas imagens sacras, é fácil constatar o estreito vínculo entre alma e comércio. No Museu da Inconfidência de Ouro Preto encontram-se, ainda hoje, duas pinturas que causam impacto nos visitantes e ajudam a compreender os princípios morais que regiam a vida social no período colonial: as telas “Morte do Justo” e “Morte do Pecador”. Abraçado ao crucifixo e despojado de bens materiais, o Justo, resignado, aceita a palavra do padre. Os Doutores da Igreja e os anjos sentem compaixão e rogam por ele. O Diabo, do lado esquerdo da tela, se debate em vão, pois perde mais uma alma. A mensagem é de que o destino do homem de bem é a boa morte e a aceitação no Paraíso. O quadro “Morte do Pecador” traz ensinamento ainda mais forte. A morte é representada por um corpo de mulher. A vaidade (Vanitas), bela jovem, aparece no espelho que o Diabo segura. O leito ostenta riqueza, e à sua volta seres do Inferno a observam. A mulher recusa o auxílio no Juízo Final e vira o rosto diante do crucifixo. Como gesto final, sua mão esquerda parece querer se agarrar a sacos cheios de moedas. O Pecador rejeita a possibilidade de salvação, afeito que é à riqueza material e à usura.

Na maioria das vezes, o medo da danação eterna surtia efeito: mesmo podendo negar, o devedor assumia o débito. Em 1741, o tocador de rabeca João Pedro Catanazzo cobrou de Antonio do Carmo 15 oitavas (equivalente a 18 mil réis) referentes ao pagamento por seus serviços musicais. Após tentativas amigáveis, recorreu à cobrança judicial. Antonio, o devedor, nomeou um procurador para confessar seu débito. Em janeiro de 1771, Lourença Maria da Soledade denunciou Manoel da Costa: a “lavação de roupa que lhe lavou” tinha custado “três oitavas e meia e um tostão de ouro”. Cansada de tanto cobrar, mesmo sem qualquer documento que comprovasse a dívida, Lourença reivindicou seus direitos na Justiça e foi bem-sucedida. Na presença do Juiz Ordinário, Manoel jurou pela sua alma que devia, e foi condenado a pagar a dívida e as custas.

Assim como o rabequeiro João Pedro e a lavadeira Lourença, muitos outros prestadores de serviços buscavam na Justiça garantir os valores de seu sustento, como tropeiros, barbeiros, sapateiros, cabeleireiros, alfaiates, ferreiros, carpinteiros, boticários, costureiras, cozinheiras. Mas também os donos de estalagens, vendas, lojas, comerciantes de grosso trato, sobretudo os vendedores de fazendas. Todos se beneficiaram com as práticas de crédito baseadas no empenho da palavra oral por meio do juramento d’ alma.

Alguns casos demonstram que as decisões da Justiça passavam por cima até mesmo de grandes diferenças de classe e status social. Bento de Oliveira Carvalho era um grande negociante do Rio de Janeiro, com representantes em Vila Rica, Sabará e cidades da Bahia. Em 1744, em uma de suas viagens de negócios, esteve em Vila Rica e denunciou um rol de devedores. Entre eles, um preto alforriado de nome Bernardo. Em juramento, este negou a dívida. A palavra empenhada do negro foi suficiente para livrá-lo da acusação feita pelo influente homem de negócios.

O método não impedia polêmicas. Entre religiosos e juristas havia divergências sobre os inconvenientes de guiar-se pelo juramento d’ alma para condenar ou absolver no caso de dívidas. Afinal, sabia-se que alguns devedores se livravam da obrigação com mentiras deslavadas. O jesuíta Nuno Marques Pereira, conhecido como o Peregrino da América (1652-1728), e o jurista italiano Cesare Bonesana, o marquês de Beccaria (1738-1794), argumentavam que aquela lei contrariava o sentimento natural do réu, que, obviamente, não queria abrir mão de sua renda e tratava o juramento como mera formalidade. “Todas as leis opostas aos sentimentos naturais do homem são inúteis e, por conseguinte, nefastas”, escreveram.

A discussão tornava-se ainda mais complexa pelo fato de a própria legislação eclesiástica permitir ao devedor que, consciente de sua dívida, jurasse em falso. Sua “tábua da salvação” era o sacramento da confissão. No período da Quaresma, todos eram obrigados a confessar seus pecados ao padre e comungar. A “desobriga” era registrada em livro, que informava a data na qual o fiel “se assentou por irmão e se obrigou as leis de compromisso”. Após a confissão, ele recebia uma penitência espiritual e depois um bilhete, como um comprovante de sua desobriga – era a quitação, por escrito, de sua dívida com Deus.

Em fins do século XVIII, a Igreja reconheceu que o falso juramento não era tão definitivo: pecar de palavra não implica necessariamente a “perda da graça”, apenas “enfraquece a alma”. Para remediar o problema, é só pagar umas penitências... e o devedor fica livre tanto da dívida quanto da perdição.
Por que, então, os processados continuavam jurando suas dívidas? Há registros dessa prática em Vila Rica até o início do século XIX. Além do temor religioso, haveria outra explicação para tamanha sinceridade?

Provavelmente, sim. Em uma economia com escassez de moedas, a confiança era um valor tão concreto quanto o dinheiro. O acesso ao crédito dependia do prestígio social da pessoa. A fama de jurar em falso e cometer crime de perjúrio representava um risco muito grande: perder o acesso ao crédito e, assim, ver ameaçada a própria sobrevivência. Afinal, se não fosse o juramento d’alma, como as pessoas poderiam fazer rodar a ciranda de suas mercadorias e serviços?
A salvação da alma até que podia esperar. Mas não a abertura de um novo empenho.

Cláudia Coimbra do Espírito Santo é doutoranda em História Econômica na USP e autora da dissertação de mestrado “Economia da palavra: ações de alma nas Minas setecentistas” (USP, 2003).

Saiba Mais - Bibliografia:

LE GOFF, Jacques. A bolsa e a vida. A usura na Idade Média. São Paulo: Brasiliense, 1986.

SILVEIRA, Marco Antônio. O universo do indistinto. Estado e Sociedade nas Minas Setecentistas (1735-1808). São Paulo: Hucitec, 1997.



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