quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Abolição da escravatura - Lenta e gradual

Princesa Isabel

A abolição da escravatura no Brasil, que alterou de imediato a estrutura de produção agrícola e, a longo prazo, as fórmulas sociais e étnicas pelas quais se compôs a população do país, não foi um simples gesto magnânimo do poder imperial imbuído de princípios humanitários. Lentamente preparada por sucessivos avanços ao longo do século XIX, a abolição decorreu, isto sim, da inevitável conjunção de dois fatores de peso: as pressões externas da política inglesa, que de há muito se opunha ao tráfico escravista, e as pressões internas de um grande movimento popular, o abolicionismo, cujas origens remontam aos quilombos e às revoltas de africanos iniciadas ainda no período colonial.
Do ponto de vista estritamente legal, a abolição concretizou-se em 13 de maio de 1888, um domingo, quando a princesa Isabel, então regente do império, sancionou a lei no 3.353, que concedeu liberdade imediata a todos os escravos existentes no Brasil e se tornou conhecida como a Lei Áurea. Resultante de projeto lido pelo ministro da Agricultura, Rodrigo Silva, em nome da princesa regente e do imperador D. Pedro II, na sessão da Câmara dos Deputados do dia 8 de maio de 1888, a lei da abolição não previa nenhuma compensação para os proprietários de escravos e era de uma concisão exemplar. Constava de apenas dois artigos e estava assim redigida: "Art. 1o. É declarada extinta a escravidão no Brasil. Art. 2º. Revogam-se as disposições em contrário."

Primeiros abolicionistas. Na segunda década do século XIX, havia no Brasil cerca de 1.200.000 escravos negros, contra apenas três milhões de habitantes livres e brancos. A agricultura de exportação, totalmente dependente da mão-de-obra escrava, resistia a mudanças nesse quadro, opondo-se não só à libertação dos cativos como também ao fim do tráfico. Toda a estrutura escravocrata da economia brasileira foi contestada porém no exterior, desde o século XVIII, por não ser compatível com novas concepções internacionais sobre o trabalho, já então em vigor.
O mais antigo abolicionista do Brasil, segundo as Efemérides do barão do Rio Branco, foi o padre português, residente na Bahia, Manuel Ribeiro da Rocha, que em seu Etíope resgatado (1757) se antecipou às idéias abolicionistas propostas pelos ingleses Thomas Clarkson (1786) e William Wilberforce (1788).
O combativo jornalista Hipólito José da Costa, radicado em Londres desde que conseguira evadir-se dos cárceres da Inquisição (fora preso por ser maçom), atacou o problema da escravatura no instante mesmo em que a família real portuguesa, para escapar da invasão napoleônica, se refugiou no Brasil. Já em 1809, ele escreveu em seu Correio Braziliense: "Se o governo do Brasil remediar este mal, os filantropos lhe perdoarão todos os mais."
A geração da independência -- Hipólito José da Costa, José Bonifácio, Caldeira Brant e o próprio imperador D. Pedro I -- era adversa à escravidão, mas temia que o país se desorganizasse se a cessação do tráfico de africanos não fosse precedida, em prazo razoável, pela reorganização do trabalho.

Extinção do tráfico. Depois da independência, o tráfico continuou, como se o Brasil ignorasse o Congresso de Viena (1815) e o tratado de 1817, que fixou medidas de repressão ao comércio de escravos a serem executadas em conjunto por autoridades britânicas e portuguesas.
A Inglaterra, que então dominava os mares e a metade do montante do comércio mundial, não desistiu porém de suas pressões. Em conseqüência disso, o Brasil foi forçado a firmar o tratado de 3 de novembro de 1826, que marcou um prazo de três anos para a completa extinção do tráfico. Em cumprimento a esse tratado, foi promulgada a lei de 7 de novembro de 1831, que libertava os escravos desembarcados no Brasil. Tal lei nunca seria aplicada e o tráfico, com a complacência do governo, prosseguiu a todo vapor.
A partir de 1845, com a chamada Aberdeen bill, o tráfico recrudesceu, porque os fazendeiros do setor agro-exportador (Nordeste e Sudeste), temendo o fim da importação de escravos, resolveram fazer estoques. A Aberdeen bill passou então a sujeitar aos tribunais britânicos os navios brasileiros que operavam no tráfico. Em abril de 1850, cruzadores ingleses chegaram a apreender navios contrabandistas até dentro de águas territoriais e portos brasileiros. Logo depois, em 14 de outubro, o ministro da Justiça, Eusébio de Queirós, assinou a lei que pôs fim ao tráfico clandestino de africanos para o Brasil.
Com a extinção do tráfico, o capital investido no comércio negreiro desviou-se para outras atividades. Surgiram então os bancos emissores, as companhias de imigração e colonização, as empresas de estradas de ferro. Seria a hora de acabar de vez com a escravidão, não fosse a reação dos fazendeiros, que se encastelaram na defesa de seus interesses ameaçados. Sob esse clima, não teve maior repercussão o projeto do deputado Pedro Pereira da Silva Guimarães (1850 e 1852), que concedia liberdade aos nascituros.

O movimento ganha força. Na verdade, só um decênio após a Lei Eusébio de Queirós o movimento emancipacionista adquiriu novo alento, graças sobretudo à ação do Instituto dos Advogados. Foram abolicionistas todos os presidentes do Instituto, parlamentares ou não, como Carvalho Moreira, Silveira da Mota, Urbano Pessoa, Perdigão Malheiros e, mais adiante, Nabuco de Araújo e Saldanha Marinho.
Em 1863, os Estados Unidos decretaram a libertação de seus escravos. Três anos depois, D. Pedro II encaminhou a seus ministros um apelo que recebera, no mesmo sentido, da Junta Francesa de Emancipação. O Conselho de Estado iniciou em seguida o estudo do problema, com base em cinco projetos elaborados por Pimenta Bueno (depois visconde e marquês de São Vicente).
Ao serem debatidos os projetos de Pimenta Bueno, o conselheiro Nabuco de Araújo lembrou uma série de medidas que alterariam por completo as relações ainda vigentes entre senhores e escravos: a liberdade dos nascituros, a garantia do pecúlio, a supressão dos castigos corporais e a alforria invito domino, ou seja, mesmo contra a vontade do senhor. Nabuco de Araújo chegou até a propor a criação de um fundo de emancipação, destinado à concessão de alforrias de caráter compulsório, tendo em vista os motivos de saúde, comportamento e serviços prestados.
A guerra do Paraguai tornou inadiáveis algumas dessas medidas. No recrutamento de tropas, o Exército e a Marinha tiveram de apelar para o concurso dos negros, que deixaram de ser simples máquinas agrícolas para se transformarem em "voluntários da pátria".
O processo se acelera. Dois decretos assinados por Zacarias de Góis e Vasconcelos refletiram com clareza a precipitação dos acontecimentos. O primeiro, de 6 de novembro de 1866, concedia liberdade gratuita aos escravos designados para o serviço do Exército; o outro, de 28 de março de 1868, mandava proceder à matrícula geral dos escravos. Esse último, em especial, abriu espaço para numerosas demandas interpostas por advogados que foram grandes abolicionistas, como Saldanha Marinho, no Rio de Janeiro, e Luís Gama, em São Paulo.
A ofensiva forense foi intensa. Em 1871, por exemplo, o jovem advogado José Joaquim Peçanha Póvoas propôs 1.604 ações contra senhores que obrigavam escravas à prática da prostituição, obtendo 729 alforrias.
As etapas seguintes do movimento antiescravista foram marcadas pela Lei do Ventre Livre, de 28 de setembro de 1871, permanentemente fraudada, e a Lei dos Sexagenários, de 28 de setembro de 1885. De acordo com a primeira, a partir dela os filhos de mãe escrava seriam livres; pela segunda, os maiores de sessenta anos ganhariam alforria.
Aos poucos, o abolicionismo ganhava impulso no país. No Ceará, os jangadeiros que faziam o transporte de outros portos nordestinos para Fortaleza negaram-se a levar escravos. Em 1844 a própria província do Ceará aboliu a escravatura em seu território, gesto seguido no mesmo ano pela província do Amazonas e por três municípios da província do Rio Grande do Sul.
Quando da aprovação das leis do Ventre Livre e dos Sexagenários, achava-se no poder o Partido Conservador, ao qual competia, quase sempre, aplicar as reformas propostas pelo Partido Liberal. A questão servil não constava, entretanto, do programa de nenhum dos partidos. Houve conservadores, como Andrade Figueira, que nunca mudaram sua intransigente posição contra os avanços emancipacionistas. Muitos liberais, por sua vez, discordaram do ponto de vista expresso por Rui Barbosa no famoso Parecer sobre a reforma do elemento servil (1884).
De fato, o abolicionismo foi um movimento à margem dos partidos políticos, que sensibilizou as parcelas mais esclarecidas da população e forneceu temas polêmicos a numerosos poetas, como Fagundes Varela e Castro Alves. Em sua fase decisiva, a campanha que culminou no 13 de maio foi impulsionada por entidades civis, como a Sociedade Brasileira contra a Escravidão, de André Rebouças, e a Confederação Abolicionista, de João Clapp, ambas no Rio de Janeiro, ou por organizações secretas e até subversivas, como o Clube do Cupim, de José Mariano, no Recife, e os Caifases, de Antônio Bento, em São Paulo.
Lei Áurea - 13 de maio de 1888.
No papel de relevo que coube à imprensa, destacaram-se os grandes jornais do Rio de Janeiro: a Gazeta de Notícias, de Ferreira de Araújo; O País, de Quintino Bocaiúva, notadamente pela seção que nele mantinha Joaquim Serra; a Gazeta da Tarde, de Ferreira de Meneses e José do Patrocínio; e a Revista Ilustrada, de Ângelo Agostini.
Advogados, jornalistas, estudantes, escritores e funcionários constituíram a vanguarda do movimento abolicionista. A ela se integraram os oficiais do Exército, após memorável reunião do Clube Militar em outubro de 1887, que dirigiram à princesa regente um apelo para que os soldados não fossem obrigados à "captura de pobres negros que fogem à escravidão".
A abolição decorreu, portanto, de um movimento de opinião que se sobrepôs aos partidos e aos próprios grupos monárquicos, nos quais prevalecia quase sempre a vontade da classe mais rica e poderosa, a dos senhores de escravos. Em suma, a abolição foi feita pelo povo. Por aqueles que pertenciam ao "partido dos que não tinham nada a perder", segundo a frase cáustica do parlamentar liberal Martinho Campos, que se intitulava, cheio de orgulho, um "escravocrata da gema".
Missa campal de Ação de Graças, no Rio de Janeiro, reúne a Princesa Isabel e cerca de vinte mil pessoas, celebra a abolição, no dia 17 de maio de 1888.


ABOLICIONISMO NO BRASIL - SÉCULO XIX


Tratado de Aliança e Amizade, 1810
Assinado entre o Governo de Portugal e a Inglaterra, uma de suas cláusulas previa a abolição gradual do trabalho escravo na Colônia e a limitação do tráfico às colônias portuguesas na África.

Alvará de 24 de novembro de 1813

Regulou a capacidade interna dos navios empregados no tráfico de escravos.

Convenção de 22 de janeiro de 1815
Determinou o cessamento do tráfico de escravos ao norte da linha do equa­dor, retirando do alcance de Portugal fontes de abastecimento de negros como a Costa da Mina. Portugal consente em delinear com a Inglaterra um futuro tratado para a abolição total do tráfico.

Tratado entre os governos da Inglaterra e Portugal, 28 de julho de 1817

Em reunião complementar à convenção de Viena, foi reforçada a proibição parcial do tráfico de escravos. Este ficava limitado a navios portugueses bona fide e restrito aos territórios portugueses ao sul do equador. O governo por­tuguês comprometia-se a fiscalizar a área de tráfico considerada ilegal e con­cedia também à Inglaterra o direito de visita e busca em navios suspeitos de tráfico ilícito.

Lei de 20 de outubro de 1823
Criou os Conselhos Provinciais e o cargo de presidente de Província, atri­buindo a ambos (art. 24) promover o bom tratamento dos escravos e pro­por arbítrios para facilitar a sua lenta emancipação.

Carta de lei de 23 de novembro de 1826
Estabeleceu o prazo de três anos para o encerramento do tráfico de escra­vos, a contar da data da ratificação. A ratificiação ocorreu em 1827.

Lei de 7 de novembro de 1831
Proibiu o tráfico de escravos para o Brasil, considerando livres todos os ne­gros trazidos para o Brasil a partir daquela data. As pessoas acusadas de tráfi­co e importação de escravos recebiam penalidades, de acordo com o Código Criminal, pelo crime de reduzir pessoas livres à escravidão.

Lei n0 4, de 10 de junho de 1835
Punia, inclusive com pena de morte, os escravos que matassem, ferissem ou cometessem qualquer ofensa física contra os seus senhores.

Bill Aberdeen, 8 de agosto de 1845
Lei inglesa que considerou o tráfico pirataria e autorizou a Marinha bri­tânica a capturar os navios transgressores, mesmo em águas territoriais brasileiras.



Lei de 4 de setembro de 1850 (Lei Eusébio de Queirós)
Determinou a extinção do tráfico de escravos para o Brasil, prevendo puni­ção apenas para os introdutores julgados pelos auditores da Marinha. Os fa­zendeiros envolvidos deveriam ser julgados pela justiça local.

Decreto nº 731, de 5 de junho de 1854
Ampliava a competência para julgamento dos auditores da Marinha e deter­minava a punição, processo e julgamento do cidadão brasileiro ou estrangei­ro envolvido em tráfico de escravos.

Lei 2.040, de 28 de setembro de 1871 (Lei Rio Branco ou Lei do Ven­tre-Livre)
Declarou livres os filhos de escravos nascidos a partir daquela data. Deno­minados ingênuos, deveriam permanecer oito anos em poder do proprietá­rio de sua mãe. Findo este prazo, o proprietário poderia libertá-lo, receben­do indenização de 600 mil réis, ou utilizar os seus serviços até completarem 21 anos de idade. A lei criou também o Fundo de Emancipação, cujos re­cursos seriam utilizados para libertar anualmente um certo número de escra­vos. E ordenou a matrícula de todos os escravos, cujos dados (origem, sexo, idade etc.) serviriam para o cálculo da indenização aos proprietários.

Lei provincial, de 25 de março de 1884
O presidente do Ceará, Sátiro Dias, declara extinta a escravidão na provín­cia (primeira a fazê-lo) atribuindo o fato essencialmente ao esforço das soci­edades libertadoras locais.

Lei 3.270, de 28 de setembro de 1885 (Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários)
Regulava a extinção gradual do elemento servil, libertando os escravos de mais de 60 anos. Estes ficavam sujeitos, no entanto, a prestar serviços aos seus senhores por três anos (ou até completar 65 anos), a título de indenização pela alforria.

Lei 3.310, de 15 de outubro de 1886
Aboliu a pena de açoites de escravos, ao revogar o art. 60 do Código Crimi­nal e a Lei n0 4, de 10 de junho de 1835, na parte referente ao assunto. O escravo ficaria sujeito às mesmas penas estabelecidas pelo Código Crimi­nal e à legislação em vigor.

Lei n0 3.353, de 13 de maio de 1888 (Lei Áurea)
Declarou extinta a escravidão em todo o país.

Um comentário:

  1. Já está mais do que na hora de acabar com esta historiografia Positivista que responsabiliza ingleses, a "boa vontade" de uma princesa, e outros setores da sociedade civil, pelo fim da escravidão no Brasil. É claro que esses fatores influenciaram o movimento de abolição, mas a razão maior do fim da escravidão se encontra, principalmente, nas mais diversas formas de lutas e resistências organizadas pelos próprios negros e negras deste país. Um abraço!

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