ESTAMOS ATRAVESSANDO um momento histórico muito singular. Encontramo-nos na transição da era moderna para a era pós-moderna. O mundo experimenta uma série de transformações estruturais, sociais, políticas, culturais, estéticas, econômicas, entre outras, que desestabilizam os modelos de referência que ofereciam aos indivíduos um lugar seguro e estável na sociedade.
A sociedade moderna caracterizava-se por organizar-se em torno de regras bem definidas, ou, no mínimo, esforçava-se para que assim fosse. Trabalhava-se pela manutenção da ordem e do progresso. Acreditava-se que o progresso seria resultante da ordem, isto é, se cada coisa estivesse no seu devido lugar, se cada cidadão estivesse fazendo o que devesse fazer, mandando quem pudesse mandar e obedecendo quem tivesse juízo, o progresso viria por consequência. Daí a expressão da nossa Bandeira Nacional, ordem e progresso, em evocação ao positivismo francês, que foi o berço dessa ideia. A visão social da modernidade era uma visão voltada para a coletividade. Os valores, as instituições, as tradições precisavam ser preservados em nome da coletividade, pois tudo isso era um patrimônio desta. Manter isto, não só o patrimônio material, mas, principalmente, o patrimônio simbólico, cultural, ideológico, entre outros, significava trabalhar pela manutenção da ordem necessária para que houvesse o consequente progresso. Educar o indivíduo significava trazê-lo para dentro dessa vida social já definida e regulamentada pelos seus antepassados, dignos de toda a reverência e respeito, por quem também houveram sido ditadas todas as regras da moral e dos bons costumes. Se a tarefa de governar era, precipuamente, o ato manter esse patrimônio e zelar dele, educar era não apenas manter ou zelar, mas, sobretudo, transmitir esse patrimônio. Tal tarefa cabia aos pais, em primeiro lugar e, em segundo, aos professores. Por esse motivo é que, nessa época, havia uma noção bem clara do que significava a figura de autoridade. As pessoas sabiam exatamente quem era autoridade. A autoridade era aquela pessoa investida do poder de manter, proteger e transmitir as tradições e os valores coletivos. Assim, as autoridades eram, além de os pais e os professores, também os políticos, os policiais, os juízes e assim por diante. A aproximação da grande transformação comportamental da sociedade, que veio a chamá-la de pós-moderna, trouxe com ela o enfraquecimento e a desestabilização gradativos dessas estruturas e desses valores, a ponto de que, em nossos dias, assistimos ao seu quase total desmoronamento. Perderam-se referenciais, perdeu-se a noção de bens da coletividade. Perdeu-se a ideia de quais valores e tradições sejam válidos e devam ser transmitidos. Não mais há uma noção de progresso a que se queira chegar. Simplesmente vive-se um dia após o outro, como se em meio a um turbilhão incessante. Hoje tudo é veloz, mutável, passageiro, obsoleto, e a ideia de manter-se algo caiu de moda quando não é, até mesmo, vista como contraditória. Desse momento em diante, caíram também as figuras de autoridade, pois, se não mais existe um modelo estável de sociedade, nem valores minimamente permanentes que a representem, a serem defendidos e transmitidos, logo, as pessoas que, antes, exerciam esse papel são também aniquiladas. Faz parte do painel pós-moderno, pois, a grande crise de autoridade. Os professores da geração atual, ou pelo menos uma grande parte deles, foram formados segundo os padrões da antiga sociedade moderna, onde a voz do professor tinha força e sentido, por isso era ouvida. Os professores eram, então, autoridades. Hoje, quando aqueles valores e conceitos caducaram-se, a voz dos professores, se ainda resiste em falar, é um som que ecoa sem encontrar ouvidos dispostos a ouvir. A voz dos professores reverbera entre as paredes de uma sala de aula assim como o faz a luz remanescente de estrelas mortas há milhões de anos. Os alunos com os quais os professores têm de lidar são indivíduos da era pós-moderna que não chegaram sequer a conhecer o modelo de sociedade do tempo de seus mestres e a maneira como ela funcionava, do mesmo modo que muitos dos pais desses alunos, que por tê-los concebido precocemente, ainda na adolescência, são também cidadãos desse mesmo tempo e possuem uma visão de mundo idêntica à dos seus próprios filhos. Esse é o grande problema de ordem sociológica que a educação escolar está enfrentando, e do qual ela não poderia escapar, pois é natural que turbulências dessa natureza ocorram no ponto de transição entre duas épocas. A referida crise de autoridade faz-nos crer que a sociedade esteja entregue ao caos. Todos os desequilíbrios sociais que se propagam neste período de transição formam um quadro que nos provoca diversos mal-estares, entre os quais o de nos fazer imaginar que aquela expressão é proibido proibir, escrita nos muros de Paris, em 1968, encontrou nos nossos dias o seu tempo de realização. A polícia prende o bandido, mas as leis mandam soltá-lo, quando não o mandam as leis, mandam-no o dinheiro e esse, sim, o faz com inequívoca eficiência e rapidez; outra hora, não é mais o bandido quem vai preso, mas, sim, a própria polícia, que outrora era a autoridade; a figura do político, que era uma das maiores representatividades da ordem e dos bens públicos, agora usurpa-os e torna-se protagonista tragicômica das falcatruas mais escandalosas da nação, resultando em que as instituições governamentais estejam sendo ocupadas, e até mesmo lideradas, por indivíduos gozadores, brincalhões e oportunistas, eleitos com o voto da indignação de um povo que não mais acredita em quem deveria ser sério. Toda essa prostituição dos valores, promovida pelos adultos, vai sendo assimilada pelas crianças, adolescentes e jovens, de modo que estes, subconscientemente, passem a orientar seu comportamento conforme esses exemplos a que são ostensivamente expostos. O aluno, em sua sala de aula, ouve a voz do professor sussurrar fraca e tímida, tentando incutir-lhe ideias de ética e cidadania, mas a vida real lá fora, que é muito mais convincente na percepção do educando, faz-lhe parecer que aquilo que o professor está dizendo são apenas teorias vãs ou espécies de ficções românticas. Hoje, pais não mais controlam seus próprios filhos dentro de suas casas e esperam que os professores o façam inteiramente por eles dentro da escola, ao mesmo tempo em que, por lei, cada vez menos os professores podem agir para coibir infrações de alunos. Os governos, não sabendo mais o que fazer para diminuir a presença de menores delinquentes nas ruas, aproveitam a ideia da “escola inclusiva”, que na teoria é uma coisa correta e boa, e convertem-na numa prática perversa, pois tem servido apenas para fazer da escola um curral onde se amontoam, num mesmo espaço, crianças e adolescentes de bem junto com delinquentes perigosos, bem como submetem estudantes com necessidades especiais a situações de desamparo e abandono, sem o devido cuidado, já que são colocados em salas de aula comuns, lotadas e sem as adaptações necessárias à suas demandas e, ainda, esses alunos têm de contar apenas com professores de formação comum, sem o devido preparo para dar-lhes o atendimento de que precisam e que merecem. Ou seja, está tudo errado. Estamos dentro de uma crise estrutural e ética macrossocial e, tudo isso, sob os auspícios de um sistema político psicopata. O problema educacional origina-se na esfera familiar, consolida-se em virtude das falhas graves da gestão pública da educação escolar, mas, no fim das contas, quando se constata o fracasso do jovem como aluno e como pessoa, os olhos que procuram logo achar um culpado costumam voltar-se em peso apenas na direção dos professores. Na era pós-moderna, vive-se o tempo do individualismo e do imediatismo. Alinhados com esse pensamento, os pais já não incutem nos filhos a ideia de respeito à figura do professor, pois não mais o veem como modelo ou representante de quaisquer valores que seu filho deva herdar. Nesses tempos de individualismo e imediatismo, aos pais basta que os filhos tenham boas notas bimestrais, e nada mais. Obviamente, esse não é modo de se comportar de todos os pais. Trata-se, aqui, da descrição de um fato social que é a tendência atual, e que não é uma teoria, mas, sim, é o que ocorre concretamente no dia a dia das escolas. Embora esteja sufocada e desacreditada, a voz do professor ainda não se calou totalmente, pois a educação escolar continua sendo um dos âmbitos sociais menos susceptíveis a aceitar a perda da autoridade, a achincalhação e a presença do caos, mesmo que alguém explique que esse caos seja aparente, e que se trate apenas de um fenômeno de transição entre duas épocas. Enquanto esse estado de coisas permanece, porém, o professor adoece psiquicamente, até mesmo sem perceber. Os consultórios médicos nunca estiveram tão cheios de professores enfermos como ocorre na atualidade. Nos atendimentos psicoterápicos, quando os professores vão contar como são as suas com o trabalho, começam falando de sua felicidade pela escolha que um dia fizeram da profissão, falam do seu verdadeiro prazer em ensinar, de seus velhos ideais com a educação; mas, gradativamente seu discurso vai tomando um tom angustiado e começam a enumerar problemas, até que, quando menos esperam, estão com os olhos banhados de lágrimas, descrevendo a prática docente como uma insuportável experiência de sofrimento diário. O alto grau de frustração, a sensação de inutilidade de seu trabalho, a falta de respeito e desinteresse dos alunos e indiferença por grande parte da sociedade, levam os professores ao esgotamento de suas energias físicas e emocionais, gerando quadros de depressão e doenças psicossomáticas diversas. Vou encerrar citando o papa João Paulo II, que não viveu para ver os efeitos da transição para a pós-modernidade alcançarem as proporções cataclísmicas de nossos dias, mas que, até ao ponto em que ele conseguiu perceber o rumo das coisas, expressou-se a esse respeito, proferindo as seguintes palavras: “(...) este período de mudanças rápidas e complexas deixa, sobretudo, os jovens, a quem pertence e de quem depende o futuro, com a sensação de estarem privados de pontos de referência autênticos. A necessidade de um alicerce, sobre o qual construir a existência pessoal e social, faz-se sentir de maneira premente, principalmente quando se é obrigado a constatar o caráter fragmentário de propostas que elevam o efêmero ao nível de valor, iludindo, assim, o verdadeiro sentido da existência”[1]. Não tenho dúvida de que a construção desses alicerces, sugeridos por João Paulo II, bem como o vislumbre de um novo e melhor sentido para a nossa existência, só serão alcançados mediante o trabalho sagrado de quem educa e o respeito à sua voz.
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NOTA:
Este artigo está liberado para uso, desde que se veicule o texto sempre acompanhado da presente nota:
Este artigo pode ser copiado, distribuído, postado em sites e blogs, desde que se cite a fonte e deixe o link para que outros leitores acessem.
Autor: José Fernandes, publicado originalmente no sitehttp://www.escritorjosefernandes.com, em 24 de julho de 2011).
Não é permitido fazer alterações no texto ou uso comercial do mesmo.
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[1] Carta Encíclica Fides et Ratio, do Sumo Pontífice João Paulo II, em 14 de setembro de 1998.
É um grande prestígio, para mim, receber uma apreciação positiva de meu artigo A VOZ DO PROFESSOR feita por um competente professor de História e um pesquisador de visão crítica, como é você, visto que a abordagem desse texto teve um enfoque especialmente histórico, além de sociológico e político.
ResponderExcluirTenho esperança em que dias melhores virão e em que os rumos para esses dias melhores nos serão sinalizados pela voz de quem verdadeiramente educa.
Grande abraço, meu amigo Pedro Paulo!
Grande José Fernandes, eu me sinto honrado em poder reproduzir um artigo tão coerente em retratar alguns dos grandes problemas enfrentados pelos professores em nossos tempos,e, mais honrado ainda em tê-lo como amigo e seguidor deste humilde blog. Abraços, Pedro Paulo.
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