Condenados ou não pelas autoridades religiosas, muitos brasileiros e portugueses ousaram prever o futuro ao longo de nossa história | ||
Jacqueline Hermann | ||
“Em verdade vos digo, quando as nações brigam com as nações, o Brasil com o Brasil, a Inglaterra com a Inglaterra, a Prússia com a Prússia, das ondas do mar D. Sebastião sairá com todo o seu exército”, teria dito Antônio Conselheiro, líder do arraial de Canudos de 1893 a 1897. Entre as muitas profecias que lhe foram atribuídas, teria previsto a guerra iniciada em 1896 – “Nação com a mesma Nação” – contra o Império do Belo Monte e as quatro expedições militares enfrentadas pelo arraial onde ele se reuniu com um grupo crescente de seguidores. Divulgadas por Euclides da Cunha no clássico Os Sertões (1902), essas profecias forjaram a imagem misteriosa do Conselheiro, ora beato, ora profeta, por vezes o próprio messias, mas também fanático e bárbaro, oscilando da santidade ao crime, da pureza da fé católica ao comando de uma cidadela insubordinada. Protótipo do “profeta” popular, Antônio Conselheiro encarna ainda hoje o exemplo máximo de um tipo social que encontramos no Brasil desde os primeiros anos de nossa vida colonial. Se ainda não temos prova dessas “previsões”, em nada a aura de santo ou de visionário fica alterada. Muitos aspectos ligam o Conselheiro às profundas e antigas raízes do profetismo luso-brasileiro, entre as quais sua adesão ao sebastianismo, também indicada por Euclides da Cunha, baseado na crença de que a chegada do rei D. Sebastião poria fim às guerras e iniciaria um novo tempo de paz e harmonia. Desaparecido na batalha de Alcácer Quibir em 1578, o rei português passou a ser esperado como um novo messias capaz de restaurar a unidade católica do mundo. O fenômeno surgido dessa espera – o sebastianismo – teria tido também seu profeta, Gonçalo Annes Bandarra, cujas trovas foram tomadas como profecia, pois previram a volta de um rei Encoberto para restaurar a grandeza e a glória de Portugal. Com as grandes levas de cristãos-novos – judeus convertidos ao cristianismo – que chegaram no início da colonização do Brasil, também vieram a espera messiânica, as previsões proféticas, o sebastianismo e o sapateiro Bandarra. Seus versos aparecem em documentos desde o final do século XVI. Na Primeira Visitação às Partes do Brasil, entre 1591 e 1595, o Santo Ofício registrou alguns casos de candidatos a profetas e messias, além de numerosas denúncias de práticas judaizantes reproduzidas na América. No conjunto, no entanto, foram poucos os profetas de origem cristã-nova encontrados em solo brasílico, mas as previsões sobre a espera do Messias deixaram aqui sua semente. Esse messianismo ibérico encontrou outras formas de religiosidade indígena a desafiar os jesuítas que aqui chegaram em 1549. Os “soldados de Cristo” viram-se diante de rituais e cerimônias desconhecidos e indecifráveis. Para o padre Manoel da Nóbrega (1517-1570), o líder espiritual indígena que visitava as aldeias em dia de festa “fingia trazer santidade” quando praticava antigos rituais tupi-guaranis, comandados por caraíbas. Muitas foram as interpretações sobre os sentidos dessas práticas, mas não parece haver dúvida sobre sua base profética: os “profetas” dos tupis eram os caraíbas, pajés superiores com poder de comunicação com os espíritos e de transmitir esse dom por meio da defumação com a “erva santa”, ou tabaco, como entenderam os jesuítas. Essa base mística indígena foi somada à espera messiânica de origem judaica. E diversas outras manifestações da religiosidade popular se irradiaram a partir de lideranças individuais. As visionárias Joana da Cruz e Luzia de Jesus afirmaram ter contato direto com o Criador e as almas, além de terem sido eleitas por Ele para continuar Sua obra na terra. Condenadas pelo Santo Ofício na segunda metade do século XVII, foram degredadas para o Brasil, onde provavelmente continuaram a exercitar suas predições. Do século XVIII, pelo menos mais dois casos merecem destaque. O de Pedro de Rates Hanequim, português que trabalhou nas Minas Gerais por cerca de vinte anos e elaborou um ousado “tratado” de 101 teses, no qual afirmava ser o Brasil lugar de realização do Quinto Império na terra. Algumas de suas ideias se assemelham às do célebre jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), preso e condenado pela Inquisição portuguesa nos anos 1660. Foi contemporâneo das visionárias Joana e Luzia e inspirador de projetos messiânicos cuja extensão é difícil medir [ver “O visionário da Amazônia”, p. 22]. Para Hanequim era diferente: ele mesmo era o autor das previsões que fariam do Brasil a sede do novo e derradeiro império [ver “Mártires da heresia”, p. 25]. O outro caso é o de Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, precioso por indicar o quanto a mescla de elementos variados se combinou nas visões dessa “profetisa” negra. Africana da Costa da Mina, chegou ao Brasil como escrava em 1725. Vendida para Minas Gerais, prostituiu-se, e desde 1750 passou a ter visões místicas. Tornou-se beata e reconhecida por brancos, negros e padres. Acreditava ser a encarnação do próprio messias, ter encontrado D. Sebastião em uma nau, e que com ele se casaria e criaria um Império mestiço. Foi presa e processada pela Inquisição em 1762. Do século XIX, os exemplos são numerosos. No agreste pernambucano, cerca de 200 a 400 pessoas se reuniram em torno dos ex-milicianos Silvestre José dos Santos e Manoel Gomes das Virgens para esperar D. Sebastião e inaugurar um novo tempo de paz, riqueza e harmonia. Os líderes recebiam mensagens de uma santa, guardada numa pedra, que profetizava a volta do Encoberto. Denunciado, o grupo foi debelado em 1820. Em 1836, também em Pernambuco, o mameluco João Antônio dos Santos pregou a volta do mesmo rei, guardado na gruta da Pedra Bonita, de onde sairia o rei trazendo imensas riquezas. Vários líderes sucederam a João Antônio e se disseram reis-profetas, prevendo a chegada de D. Sebastião depois que a pedra fosse banhada de sangue. No final de 1838, o grupo foi dissolvido pelas forças militares. Houve também profetas não sebastianistas, como o sacerdote negro Antônio Sodré. Nascido em 1797 na Nigéria, foi alforriado em 1836 e se notabilizou como adivinho e curandeiro em Salvador. Atendia brancos e negros até ser preso em 1862, acusado de “amansar” senhores e promover eventos relacionados ao candomblé. No Rio Grande do Sul, um grupo de imigrantes alemães seguiu a “profetisa” Jacobina, que anunciou grandes acontecimentos e afirmou ser a reencarnação de Cristo. Como tantos outros, foram combatidos pelas forças legais. Em 1872, instalou-se em Juazeiro o padre Cícero Romão Batista (1844-1934), o futuro “Padim Ciço”, que não foi “profeta”, mas considerado verdadeiro santo no Nordeste. Ganhou fama através dos milagres de suas beatas, sobretudo Maria de Araújo (1863-1914), que recebeu uma hóstia que teria se transformado em sangue em 1889. O caso, primeiro validado e depois condenado como embuste pelas autoridades religiosas, não impediu que a fama de “santidade” de Cícero se espalhasse. Se não foi profeta, foi intermediário entre a hóstia e Maria. Profetas, visionárias, místicos, adivinhos, santos – muitos foram os candidatos a intermediários dos desígnios de deuses das mais variadas crenças. Marginalizados e perseguidos, foram seguidos, reverenciados, esquecidos. O catolicismo do Brasil deixou sua marca, mas foi sempre desafiado por inusitadas combinações sincréticas. As histórias aqui contadas, mesmo fragmentadas, ajudam a compreender parte da riqueza do Brasil mestiço. Jacqueline Hermann é professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de No reino do Desejado – A construção do sebastianismo em Portugal, séculos XVI e XVII. (Companhia das Letras, 1998). |
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sexta-feira, 6 de maio de 2011
Brasil, Terra de profetas
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