Para responder esta pergunta, a primeira frase que me ocorre é a resposta clássica dada pelo grande Marc Bloch a seu neto, quando o menino lhe perguntou para que servia a História e ele disse que, pelo menos, servia para divertir. Após 45 anos de vida profissional efetiva, como pesquisadora durante seis anos e, desde então – 39 anos – também como docente do ensino universitário, considero que a diversão é essencial, entendida no sentido de prazer pessoal: a melhor coisa do mundo é fazer algo que gostamos de fato, e eu sempre adorei História, sempre foi minha matéria preferida na escola, junto com as línguas em geral.
Mas a História é, tenho certeza disso, uma forma de conhecimento essencial para a compreensão de tudo quanto diz respeito ao que somos, aos homens. Os humanistas do renascimento diziam que tudo o que era humano lhes interessava. A História é a essência de um conhecimento secularizado, toda reflexão sobre o destino humano passa, de uma forma ou de outra, pela História. Sociologia, Antropologia, Psicologia, Política, Filosofia, Economia, todas essas disciplinas têm de se reportar à História incessantemente, e com tal intensidade que o historiador francês Paul Veyne afirmou, com boa dose de provocação, que como tudo era História, a História não existia (em Como escrever a História). Quando os homens da primeira Época Moderna começaram a enfrentar para valer a questão de uma História secular, que pudesse reconstruir o passado humano independente da história da criação – dos livros sagrados, sobretudo da Bíblia – eles desenvolveram a erudição e a preocupação com os detalhes, os fatos, os vestígios humanos – as escavações arqueológicas, por exemplo – e criaram as bases dos procedimentos que até hoje norteiam os historiadores. Mesmo que hoje os historiadores sejam reticentes quanto à possibilidade de reconstruir o passado tal como ele foi, qualquer historiador responsável procura compreender o passado do modo mais cuidadoso e acurado possível, prestando atenção aos filtros que se interpõem entre ele, historiador, e o passado. Qualquer historiador digno do nome busca, como aprendi com meu mestre Fernando Novais, compreender, mesmo se por meio de aproximações. Compreender importa muito mais do que arquitetar explicações engenhosas ou espetaculares, e que podem ser datadas, pois cada geração almeja se afirmar com relação às anteriores ancorando-se numa pseudo-originalidade.
Sem querer provocar meus companheiros das outras humanidades, eu diria que a Antropologia nasce a partir da História, e porque os homens dos séculos XVI, XVII e XVIII começaram a perceber que os povos tinham costumes diferentes uns dos outros, e que esses costumes deviam ser entendidos nas suas peculiaridades sem serem julgados aprioristicamente. É justamente a partir desse conhecimento específico que os observadores podem estabelecer relações gerais comparativas e tecer considerações, enveredar por reflexões mais abstratas. Portanto, a História permite lidar com as duas pontas do fio que possibilita a compreensão do que é humano: o particular e o geral.
A História é fundamental para o pleno exercício da cidadania. Se conhecermos nosso passado, remoto e recente, teremos melhores condições de refletir sobre nosso destino coletivo e de tomar decisões. Quando dizemos que tal povo não tem memória – dizemos isso frequentemente de nós mesmos, brasileiros – estamos, a meu ver, querendo dizer que não nos lembramos da nossa história, do que aconteceu, por que aconteceu, e daí escolhermos nossos representantes de modo um tanto irrefletido – para dizer o mínimo- , de nos sentirmos livres para demolirmos monumentos significativos, fazermos uma avenida suspensa que atravessa um dos trechos mais eloquentes, em termos históricos, da cidade do Rio de Janeiro, o coração da administração colonial a partir de 1763, o palácio dos vice-reis. Quando olho para a cidade onde nasci, onde vivi quase toda a vida e que amo profundamente, fico perplexa com a destruição sistemática do passado histórico dela, que foi fundada em 1554 e é dos mais antigos centros urbanos da América: refiro-me a São Paulo. Se administradores e elites econômicas tivessem maior consciência histórica talvez São Paulo pudesse ter um centro antigo como o de cidades mais recentes que ela – Boston, Quebec, até Washington, para falar das cidades grandes, que são mais difíceis de preservar.
Não acho que se toda a humanidade fosse alimentada desde o berço com doses maciças de conhecimento histórico o mundo poderia estar muito melhor do que está. Mas a falta do conhecimento histórico é, a meu ver, uma limitação grave e, no limite, desumanizadora. Acho interessante o fato de muitas evidências indicarem que, excluindo os historiadores, obviamente, o segmento profissional mais interessado em História é o dos médicos. Justamente os médicos, que lidam com pessoas doentes, frágeis e amedrontadas diante da falibilidade de seu corpo e da inexorabilidade do destino humano. E que têm que reconstituir a história da vida daquelas pessoas, com base na anamnese, para poder ajudá-las a enfrentar seus percalços. Carlo Ginzburg escreveu um ensaio verdadeiramente genial, sobre as afinidades do conhecimento médico e do conhecimento histórico, ambos assentados num paradigma indiciário (refiro-me ao ensaio “Sinais – raízes de um paradigma indiciário”, que faz parte do livro Mitos – emblemas – sinais). Portanto, volto ao início, à diversão, e acrescento: o conhecimento histórico humaniza no sentido mais amplo, porque ajuda a enxergar os outros homens, a enfrentar a própria condição humana.
Na minha adolescência, sonhei ser médica. No ensino médio, tive boas relações com a Biologia, mas a Matemática e a Física não me trataram bem. Acabei desistindo dessa profissão extraordinária e cedendo à grande paixão pelo conhecimento histórico. É curioso constatar, a esta altura da vida, que nunca, como hoje, o Brasil precisou tanto de médicos e de historiadores competentes.
Laura de Mello e Souza
Professora Titular Aposentada da Universidade de São Paulo
Titular da Cátedra de História do Brasil da Universidade Paris Sorbonne
Parabéns professora!!! Excelente colocação e esclarecimento! Para a grande maioria conhecer a História é algo sem sentido, chato e desconexo. Deveríamos apostar mais em pelo menos encará-la, como bem disse o mestre Marc Bloch ao seu neto, como meio de diversão e entretenimento. Com certeza estaríamos construindo um mundo menos competitivo, desigual e digno. Nas escolas a pergunta "Por que estudar História?" é frequente e denota o valor que um país promove ao seu povo o lugar da memória, da cidadania, da participação sócio-política-econômica e principalmente da liberdade. No Brasil isso não é prioridade! Por isso o esvaziamento da memória e dos monumentos na construção dos espaços e tempos históricos. E atualmente o que podemos ter de pior: o negacionismo histórico! Quem sabe um dia muda?
ResponderExcluirParabéns professora! Para a grande maioria acessar a História é algo chato, desconexo e sem sentido. Deveríamos debruçar sobre ela pelo menos, como bem disse o mestre Marc Bloch ao seu neto, como diversão e entretenimento. Construiríamos, com certeza, um mundo menos bélico, menos desigual e mais próspero. A pergunta "Por que estudar História?" é recorrente nas escolas e denota o valor que o país dá ao seu povo o lugar da memória, da participação sócio-política-econômica e principalmente da liberdade. Isso não é prioridade para o Brasil. E enquanto isso percebemos a desconstrução dos espaços e memórias históricas. Pior que São Paulo é a cidade do Rio de Janeiro - arrasaram o morro do Castelo - sede da cidade colonial! Mas o pior vivemos atualmente: o negacionismo histórico! Quem sabe um dia muda?
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