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terça-feira, 12 de outubro de 2010

Personalidades históricas: Miguel de Cervantes

Miguel de Cervantes

Um dos escritores de maior repercussão na literatura universal, Cervantes criou com o Dom Quixote uma das obras-primas da literatura de todos os tempos: com ela nasceu o romance moderno e seu herói tornou-se o arquétipo do idealista a qualquer preço.
Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em Alcalá de Henares, provavelmente em 29 de setembro (dia de são Miguel) de 1547, e sabe-se que foi batizado em 9 de outubro. Estudou em Valladolid e Madri, serviu a partir de 1569 como soldado na Itália e participou, em 7 de outubro de 1571, da vitoriosa batalha naval de Lepanto contra os turcos, em que saiu gravemente ferido. Participando da expedição contra Túnis, em 1575 foi feito prisioneiro por um corsário árabe e passou cinco anos no cativeiro, mas recebeu bom tratamento de seus carcereiros, apesar das quatro tentativas de fuga, e em 1580 foi resgatado por um religioso trinitário.
De volta à Espanha, teve dificuldade em adaptar-se. Sua produção literária não obtinha sucesso e, nomeado coletor de impostos, várias vezes foi preso, em parte por denúncias falsas ou motivos não explicados. Só em 1605 a publicação do Dom Quixote aliviou-lhe a situação material. A obra teve sucesso tão grande que um anônimo, de identidade até hoje não revelada, publicou sob o pseudônimo de Alonso Fernández Avellaneda uma segunda parte apócrifa do romance. A partir de então, conseguindo ajuda financeira, Cervantes pôde dedicar-se exclusivamente à literatura.
Dom Quixote. El ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha teve seis edições no mesmo ano de sua publicação. Traduzido para o inglês e o francês, foi amplamente difundido em toda parte, até se tornar um dos mais lidos romances em todo o mundo, por crianças e adultos. Para fazer frente à falsa segunda parte lançada por Avellaneda, Cervantes, espicaçado pela fraude, publicou sua própria segunda parte em 1615. Já no prólogo da primeira afirmara ser a obra "uma invectiva contra os livros de cavalaria" que, durante muito tempo, transtornaram a cabeça das pessoas.
Se é certo esse propósito satírico, ou se há no livro um retrato irônico e melancólico da Espanha imperial e guerreira, o fato é que o romance supera de muito quaisquer intenções primeiras para transformar-se numa grande alegoria da condição e do destino humano, e do sentido universal da vida. A partir da aventura, que é o cerne da obra, Cervantes elabora a estrutura do romance num encadeamento de viagens ou saídas dos personagens, que vão sendo compostos à medida que se desenvolve a ação.
O idealismo da cavalaria e do realismo renascentista e picaresco são simbolizados nos dois personagens centrais. D. Quixote representa o lado espiritual, sublime sob certos aspectos, e nobre da natureza humana; Sancho Pança, enquanto isso, vive o aspecto materialista, rude, animal. A par disso, o humanismo e o significado filosófico conferem maior universalidade à obra, que é vista como símbolo da dualidade do ser humano, voltado para o céu e preso à terra.
Esse dualismo, muito bem ressaltado pela ideologia barroca dominante na época de Cervantes, foi muito bem assimilado por ele. É um motivo de natureza universal, particularizado em cada criatura, que o mestre procura disfarçar sob a forma de aventura cavalheiresca, inserida num mundo de fantasia: de um lado, o amor do honesto e do ideal; do outro, o do útil e do prático, dois princípios de vida que se dão as mãos no cavaleiro e no escudeiro.
D. Quixote e Sancho Pança
Situado entre os mundos renascentista e barroco, os elementos característicos de ambos se juntam nele, com predomínio do barroco. A crítica salientou a unidade da composição, típica do barroquismo, em que o grande número de episódios não desfrutam de existência autônoma, mas vivem interligados num bloco geral. Também são traços peculiarmente barrocos a disposição dos personagens em profundidade, a antítese - no plano geral, na forma, nos enlaces abstrato-concretos - , os tipos de metáfora, o paradoxo, a hipérbole, a alusão, o jogo de palavras, o encadeamento dos componentes da frase, a série assindética, o próprio dinamismo do estilo.
Por esses e outros dados da atitude barroca, o autor apóia-se em contrastes que tornam o livro cuerdo y loco (prudente e louco) e o situam entre a pregação moral e o realismo picaresco, na chamada "ordem desordenada" própria dessa tendência. Como ficou claro para os estudiosos, o traçado do romance obedece a um plano rigoroso, em que as várias excursões do cavaleiro se compõem em movimentos circulares, com os quais expressa a noção barroca do destino e a preocupação com o mundo, em que acaba por descobrir o vazio e a inanidade, a desilusão e o desengano, resultados muito distintos das peregrinações medievais e góticas, em linha reta, em direção a Deus ou à sepultura.
Exatamente por isso, o modo como o escritor soube resolver a tensão narrativa entre o real e o imaginário é uma de suas contribuições essenciais. O extraordinário é que, em sua recriação do plano ficcional, ele mantém as dimensões, as proporções, uma animação e uma estrutura de universo real. Reencontra-se o homem, estabelece-se sua moral, reconstitui-se sua verdade. O mundo, à primeira vista fantástico, é iluminado por uma virtude concreta, a caridade, ou antes, o amor do homem pelas coisas, pelos bichos, pela natureza e pelo próprio homem, redescoberto em sua dignidade primordial.
A primazia desse aspecto afetivo traduz-se numa ética de bondade, que se manifesta, em seu mais alto grau, nas relações entre D. Quixote e Sancho Pança, o cavaleiro e o escudeiro, o senhor e seu amigo, duas figuras contrastantes e ligadas por uma fraternidade de quase cerimoniosa cortesia, pela qual se prezam e se respeitam. É impossível deixar de reconhecer nesse encontro, em suas conversas e decisões, uma das imagens mais significativas da história do relacionamento humano.
Além da bondade, há em toda a narrativa uma profunda valorização da liberdade e da justiça. No caso da primeira, um dos melhores exemplos é a passagem em que Cervantes descreve a existência dos ciganos, integrados à natureza e à espontaneidade do amor. Houve, porém, quem preferisse ver a história como relato do fracasso trágico de um idealismo mal informado, assim como fracassaram na realidade as altas intenções da Espanha monárquico-católica e as do próprio Cervantes, que no início de sua vida pretendeu tornar-se soldado heróico e acabou como humilde funcionário público, na prisão e na rotina do trabalho literário.

A primeira tradução do D. Quijote para a língua portuguesa foi impressa em Lisboa em 1794. Seguiram-se várias outras, entre as quais a de Antônio Feliciano de Castilho, que apareceu de 1876 a 1878 no Porto, ilustrada com desenhos do francês Gustave Doré. Essa mesma versão foi retomada em 1933 pela Livraria Lello & Irmão, em dois grandes volumes, e difundida em edição mais simples tanto em Portugal como no Brasil. No Brasil foi publicada na década de 1980 a tradução feita por Almir de Andrade e Milton Amado.
Poesia e teatro. A poesia de Cervantes não tem as mesmas qualidades de sua prosa de ficção, embora o próprio autor apreciasse muito seu soneto sobre o túmulo de Filipe II. Tampouco interessa hoje o poema didático Viaje al Parnaso (1614), espécie de panorama crítico da literatura espanhola de sua época. De pouco valor é também o romance pastoril La Galatea (1585).
Dramaturgo de inspiração variada e muitos recursos, Cervantes não teve, porém, grande êxito no teatro porque foi eclipsado por Lope de Vega. Sua produção teatral está reunida no volume Ocho comedias y ocho entremeses (1615; Oito comédias e oito entremezes). A mais conhecida de suas peças é a tragédia histórico-patriótica Numancia, obra pseudoclássica. As comédias, com poucas exceções, são fracas. Muito melhores são os entremezes, pequenas peças humorísticas, de um realismo tipicamente espanhol.
Novelas exemplares. Não é justo explicar a glória literária de Cervantes exclusivamente pelo D. Quijote. Se não tivesse escrito esse grande romance, estaria imortalizado como autor de Novelas ejemplares (1613; Novelas exemplares), um dos mais importantes volumes de contos da literatura universal. O adjetivo ejemplar refere-se à intenção moral de Cervantes ao escrever essas pequenas obras-primas, intenção que nem sempre é evidente, porque constam do volume três séries de novelas muito diferentes. Novelas idealistas, de aventuras e acidentes perigosos que acabam bem são "El amante liberal", "La española inglesa", "Señora Cornelia" e sobretudo a magistral "La fuerza del sangre" ("A força do sangue").
Ideal-realistas são "La ilustre fregona" ("A criada ilustre") e "La gitanilla" ("A ciganinha"). O realismo de Cervantes triunfa em "El casamiento engañoso", em "El celoso extremeño" ("O estremenho ciumento"), na novela picaresca "Rinconete y Cortadillo" e no "Licenciado Vidriera", cujo personagem principal antecipa o D. Quixote, e sobretudo no "Coloquio de los perros" ("Diálogo dos cães"), verdadeiro testamento da melancólica sabedoria de vida de Cervantes.
Persiles. O próprio Cervantes parece nunca ter esquecido o desastre de suas esperanças idealistas. Embora critique humoristicamente (no "Coloquio de los perros") a falsidade do gênero pastoril, sempre pensou em escrever uma segunda parte de La Galatea, e incluiu ainda no Don Quijote um episódio pastoril, a história de Marcela. Tampouco parece ter sido intransigente a aversão de Cervantes ao romance de cavalaria, pois pertence a esse gênero sua última obra, Los trabajos de Persiles y Segismunda. O enredo complicado dessa história de aventuras, narrada em estilo retórico e altamente romântico, torna hoje difícil sua leitura, em que Azorín descobriu uma qualidade especial de angústia.
Cervantes morreu em Madri em 23 de abril de 1616. Poucos dias antes de sua morte escreveu o prefácio de Persiles (publicado postumamente em 1617), em que cita os velhos versos: "Puesto ya el estribo, / Con las ansias de la muerte."

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