" História, o melhor alimento para quem tem fome de conhecimento" PPDias

sábado, 4 de junho de 2011

DEUSES NÃO GOSTAM DE CRIANÇAS

EM ÉPOCAS REMOTAS, os rituais religiosos escreveram as páginas mais cruéis da história da humanidade. O curioso é notar que as crianças eram as vítimas preferidas.
        Os cananeus, povo que habitou Canaã antes que aí chegassem os israelitas, praticavam rituais de sacrifício humano, entregando seus próprios filhos à morte, como oferenda ao deus Maloque. Esse deus era representado por uma estátua de latão, figurando o corpo de um homem com cabeça de touro. Tinha os braços estendidos para a frente, um pouco abaixados, as mãos em forma de concha, voltadas um pouco para cima. Os pais depunham as crianças nas mãos da estátua, e ali elas permaneciam por um pouco, até que caíssem numa fornalha que se encontrava logo abaixo, onde morriam queimadas. A estátua às vezes era oca e colocava-se fogo no interior da mesma. As crianças, então, eram postas nas mãos metálicas em brasa da estátua, onde eram literalmente fritadas, morrendo de modo extremamente doloroso. Durante essas macabras cerimônias, tocavam-se tambores para abafar o horror dos gritos dos inocentes imolados. Essas são, para nós, cenas de horror inimagináveis, mas, para eles, isso era apenas um aspecto de seu culto religioso. Era tudo feito muito respeitosamente em nome de seus deuses.
        Os israelitas, na intenção de habitar na terra dos cananeus, travaram guerra com o povo local. Quando, de repente, se viram em desvantagem na batalha, tendo alguns de seus homens sido levados cativos pelos seus opositores, rogaram ajuda ao Senhor e, como está relatado na Bíblia, para conseguirem derrotar os cananeus, os israelitas prometeram a esse mesmo Senhor que, se eles fossem ajudados pelas forças do Alto no seu intento de destruir os cananeus, destruiriam, também, depois, toda a cidade, ato este que seria a sua forma de agradecimento ao Senhor pela força. Ao fim, ganharam a guerra. Mataram os cananeus. E, cumprindo o que haviam prometido ao Senhor, destruíram também toda a cidade, (Números 21:1-3). Como se vê, os israelitas, àquele tempo, entendiam que Deus seria um ser beligerante, que não só aprovava resoluções de conflitos por meio de guerras, mas que também ajudava a promovê-las e executá-las. Os israelitas, que nesse período ainda estavam aprendendo a ser monoteístas, e inclusive tinham extrema dificuldade para se adaptar com essa ideia, viviam religiosamente um exclusivismo cruel, tendo sido, por isso mesmo, um povo altamente destrutivo e intolerante. Após conquistar a terra de Canaã, os israelitas adotaram certos costumes dos cananeus, entre eles o de matar queimados os seus próprios filhos em rituais espirituais.
        Para nós, essas são práticas que aviltam o nosso bom senso. Sequer conseguimos imaginar tanto horror, tanta crueldade, tanta ignorância. Mas os israelitas não pensavam assim deles próprios. Ao contrário, acreditavam que não houvesse na face Terra nenhum outro povo que representasse tão bem a vontade do Senhor quanto eles próprios, pois tudo o que praticavam era em nome de sua crença, e nenhuma outra ideia sobre a Divindade, vinda de outros povos, poderia ser mais legítima do que a deles.
        Na Grécia antiga, Zeus era o deus dos deuses e dos homens, o Senhor Supremo. No culto a Zeus também havia, em determinadas circunstâncias, práticas de sacrifícios humanos, em horripilantes espetáculos. O pai ou o avô de uma criança matava o filho ou o neto, deixando-o passar sede prolongada, e depois o oferecia a Zeus. A oferta do filho imolado era chamada “Manjar da Divindade”.
        Quando Cartago estava sendo sitiada, os seus habitantes entenderam que a desgraça se abatia sobre eles pelo fato de o deus Saturno estar irado, por lhe terem oferecido em sacrifício apenas crianças filhas de escravos e estrangeiros. Então, na iminência do ataque dos adversários, os cartagineses sacrificaram cerca de duzentas crianças, todas escolhidas a dedo, filhas das melhores famílias, crianças bonitas e saudáveis, a fim de satisfazerem a divindade ofendida, pois esta, segundo a crença dos cartagineses, não gostava do cheiro de carne queimada de crianças filhas da ralé.
        Entre os povos da América pré-colombiana, os Astecas, localizados onde hoje é o México, adoravam o deus Tlaloc, divindade da chuva, que exigia sacrifício de crianças. A crença reinante era que as lágrimas vertidas pelas crianças imoladas retornariam em forma de chuva para fertilizar os campos cultivados e dar boas colheitas.
        As formas de crenças e manifestações de cultos, acima descritas, constituem expressões antigas do comportamento do homem diante da Divindade. Naturalmente, nos causam estupefação pelo seu inominável absurdo. Porém, não podemos nos deixar aturdir tanto com o esdrúxulo que nos possam parecer esses rituais do passado, a ponto de nos cegarmos para a nossa própria realidade atual, que não é muito diferente. Não podemos nos esquecer que em pleno século XXI, o nosso mundo ainda é um mundo onde milhões de crianças morrem sacrificadas. O leitor está admirado? Ou não acredita? Então, consulte os dados estatísticos oficiais da ONU: Lá você verá que só de fome morrem mais de 5.000.000 (cinco milhões!) de crianças por ano. O que justifica isso? Nada! É simplesmente inadmissível que num mundo comandado por adultos numa era tão desenvolvida tecnologicamente morram cinco milhões de crianças todo ano! Hoje não adotamos mais o método de queimar nossas crianças, mas desenvolvemos outros artifícios não menos cruéis, como, por exemplo, matá-las de fome. Essas crianças são sacrificadas, sim, pois se elas morrem de fome não é por falta de comida, nem por infertilidade de nossas terras ou falta de dinheiro. Basta dizer que a metade de toda a riqueza do mundo está concentrada nas mãos de pouco mais de trezentas pessoas, e então não teremos dúvidas de que as crianças que morrem de fome, hoje, são vítimas do abandono do mundo adulto, onde o dinheiro - deus desse mundo materialista - vale mais do que a vida humana. Mas, contraditoriamente, nunca houve tempos de tanta manifestação de religiosidade como nos nossos dias. Só para ilustrar, os Estados Unidos são a Nação mais poderosa do planeta e ostentam o título de maior país protestante do mundo. A política econômica desse país, entretanto, representa uma das mais cruéis máquinas de segregação dos pobres e seu extermínio, e é responsável pela morte de uma grossa parcela das infelizes cinco milhões de crianças sacrificadas a fome por ano. Isso nos faz concluir, tristemente, que o homem do nosso tempo continua praticando o sacrifício de crianças, só que não mais em nome de Deus. As nossas crianças, hoje, são sacrificadas não a Deus, mas apesar de Deus. 

Jose Fernandes


Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original (Artigo de autoria do escritor José Fernandes, publicado no site www.escritorjosefernandes.com, no dia 29/05/2011.). Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

3 comentários:

  1. Muito boa esta postagem. Parabéns pela escolha do tema.

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  2. Obrigado Professor Josimar, José Fernandes é um colega de trabalho que tem muito a nos ensinar sobre cultura em geral e especialmente sobre os assuntos que cercam as religiões universais. Abraço. PPDias

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  3. Obrigado meu amigo Pedro e obrigado prezado professor Josimar. É, para mim, uma honra ver meu artigo exposto neste espaço que é frequentado por um seleto grupo de leitores. Meu abraço.

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