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quarta-feira, 19 de maio de 2010

O quebra-cabeça da escravidão

No Brasil da miscigenação racial, as relações entre os senhores e seus escravos eram muito mais dinâmicas do que se imagina

por Laurentino Gomes

No cemitério da Santa Casa de Porto Alegre, uma tumba do fim do século 19 oferece um desafio para os estudiosos da escravidão no Brasil. Ali estão depositados os ossos do barão de Nonoai, sua mulher e um casal de escravos. Na lápide de granito recém-colocada pela família durante a reforma do túmulo, os nomes dos escravos foram omitidos, mas seus restos mortais permanecem lá, anônimos, como um testemunho silencioso da peculiar relação que se estabeleceu entre senhores e cativos durante os quase quatro séculos de escravidão. Eles são a prova de que no Brasil da miscigenação racial portuguesa as relações entre opressores e oprimidos, apesar de muitas vezes cruéis, eram mais fluidas do que indica o senso comum. O desembarque, a compra e a venda de escravos fizeram

parte da rotina brasileira entre os séculos 16 e 19. Nesse período, cerca de 10 milhões de cativos africanos foram transportados para as Américas. O Brasil, maior importador do continente, recebeu quase 40% desse total, algo entre 3,6 milhões e 4 milhões de escravos.

Quando a corte portuguesa chegou ao Brasil, em 1808, navios negreiros vindos da costa da África despejavam no Mercado do Valongo, no Rio de Janeiro, entre 18 mil e 22 mil homens, mulheres e crianças por ano. Ali permaneciam em quarentena, para serem engordados e tratados das doenças. Quando adquiriam aparência mais saudável, eram comercializados da mesma maneira como hoje pecuaristas negociam animais de corte no interior do Brasil. O tráfico de africanos era um negócio gigantesco. Incluía agentes na costa da África, exportadores, armadores, transportadores, seguradores, importadores, atacadistas que no Brasil repassavam “a mercadoria” para traficantes regionais. Os lucros eram astronômicos. Em 1812, metade dos 30 maiores comerciantes do Rio de Janeiro se constituía de traficantes. Um negro comprado em Angola, por 70mil-réis, era revendido em Minas Gerais por até 240 mil-réis. Os museus coloniais estão repletos de instrumentos pavorosos de suplício dos escravos. A punição mais comum era o açoite, nas costas ou nas nádegas. Há relatos de castigos com 200, 300 ou até 600 golpes de açoite. Para evitar infecções nas feridas, banhava-se o cativo com uma mistura de sal, vinagre ou pimenta malagueta.

Muito antes da abolição, já havia no Brasil um grande número de escravos libertos, chamados de "negros forros”. Alguns acumulavam dinheiro vendendo serviços nas cidades e assim conseguiam comprar a liberdade. Outros ganhavam a alforria por iniciativa de seus proprietários. A liberdade
não significava melhoria de vida. No cativeiro, a manutenção dos escravos era regulada por lei. Seus donos tinham a obrigação de alimentá-los e dar-lhes moradia e assistência mínima. A lei previa que, em caso de maus-tratos comprovados, o senhor poderia perder sua propriedade. Livres, no entanto, os negros ficavam entregues à própria sorte. Curiosamente, muitos alforriados chegavam a enriquecer e se tornavam proprietários de escravos e terras. Eram casos relativamente raros, mas a simples existência deles torna o mundo da escravidão no Brasil ainda mais surpreendente. O mais famoso é o da mulata Francisca da Silva de Oliveira, a Chica da Silva do distrito diamantino de Tejuco, em Minas Gerais. Chica nasceu escrava, mas conquistou sua liberdade em dezembro de 1753, concedida pelo
contratador de diamantes João Fernandes de Oliveira. Embora nunca tenham se casado oficialmente, ela e João Fernandes mantiveram um relacionamento estável de 17 anos, período em que tiveram 13 filhos. Entre os bens de Chica havia um “significativo plantel de escravos”, segundo o historiador Ronaldo Vainfas. A miscigenação racial, uma das características mais notáveis da colonização portuguesa, fez com que os contatos entre opressores e oprimidos fossem freqüentemente permeados por relações familiares e afetivas.

Ao lado das chibatadas que vergastavam de forma cruel as costas dos cativos, havia também relações fraternas que se perpetuavam por toda a vida, ou mesmo além dela, em tumbas compartilhadas ou sobrenomes e descendências que se entrelaçaram ao longo de muitas gerações. Um caso exemplar é do estancieiro gaúcho João Pereira de Almeida. Ele era senhor de um grande plantel de escravos, mas costumava tratar seus cativos de forma branda. Na segunda metade do século 19, sensibilizado pela onda abolicionista, tomou a iniciativa de conceder a liberdade a todos eles. A atitude impressionou o imperador Pedro II, que o agraciou com o título de barão de Nonohay – grafia que,
posteriormente, foi modificada para Nonoai, hoje nome de um município na região da antiga propriedade do fazendeiro. Dois desses escravos recusaram a condição de libertos. É esse o casal que hoje divide a tumba do barão na capital gaúcha. Depositados lado a lado, os ossos dessas pessoas são também um advertência silenciosa de que, ao estudar História, é preciso fugir à tentação do maniqueísmo, que classifica seus personagens entre vilões e mocinhos, sem levar em conta as peculiaridades de cada época

Um comentário:

  1. Amigo Pedro, parabéns pelo blog! Mais um veículo de importantes reflexões para o despertamento da consciência rumo à verdadeira cidadania...
    Grande abraço, Rossano.
    www.rossanosobrinhoferreira.blogspot.com

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