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domingo, 16 de maio de 2010

Termos históricos: Positivismo

Ao surgir no século XIX, quando as descobertas científicas e os avanços técnicos faziam crer que o homem podia dominar a natureza, o positivismo opôs às abstrações da teologia e da metafísica o método experimental e objetivo da ciência.
Ideologia e movimento filosófico fundado por Auguste Comte, o positivismo tem como base teórica os três pontos seguintes: todo conhecimento do mundo material decorre dos dados "positivos" da experiência, e é somente a eles que o investigador deve ater-se; existe um âmbito  formal, no qual se relacionam as idéias, que é o da lógica pura e da matemática; e todo conhecimento dito "transcendente" -- metafísica, teologia e especulação acrítica -- que se situa além de qualquer possibilidade de verificação prática, deve ser descartado. A evolução posterior do positivismo passou por diversas etapas e reelaborações, entre as quais cabe destacar o positivismo crítico e o neopositivismo ou positivismo lógico, e exerceu influência notável no desenvolvimento da filosofia analítica em meados do século XX.
No aspecto crítico, como o positivismo repudia toda especulação em torno da natureza da realidade que afirme uma ordem transcendental não-suscetível de demonstração pelos dados da experiência, sua ética é secular e terrena, e coincide essencialmente com o utilitarismo britânico -- sobre o qual influiu de maneira decisiva -- que se pode resumir na célebre frase de Jeremy Bentham: "A maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas."

Positivismo de Comte. A doutrina filosófica do positivismo tem raízes ideológicas em diversos movimentos que tiveram lugar no século XVIII, como o empirismo radical de David Hume, que concedia primazia absoluta à experiência no processo do conhecimento, e o Iluminismo, com sua crença no progresso da humanidade por meio da razão. O positivismo é produto direto de sua época. Com a revolução industrial já plenamente realizada, em pleno florescimento das ciências experimentais, que conquistavam progressivamente mais e mais espaço, em detrimento da especulação racionalista, Comte tentou a síntese dos conhecimentos positivos de seu tempo. Era recente e estrondoso o triunfo da física, da química e de algumas idéias biológicas. Com intenção de reforma social, o pensamento de Comte pretendeu ser um comentário geral sobre os últimos resultados das ciências positivas.
Ao contrário do que afirmaram alguns divulgadores, Comte nunca se inclinou a favor de um empirismo radical. Pelo contrário, situava o positivismo entre o empirismo -- a pura experiência direta do fato -- e o racionalismo, que ele chamava também de misticismo. O saber científico depende tanto de dados empíricos como de elaboração racional. O real  não é dado diretamente, pela simples sensação, ou mera apreensão da realidade pelos sentidos, que precisam ser complementados por ação do intelecto. O espírito reage, reelabora os dados dos sentidos e os organiza segundo uma hipótese de trabalho e cria uma imagem de mundo formada por elementos empíricos e racionais.
No pensamento social de Comte manifesta-se a influência de seu mestre, Saint-Simon, teórico do socialismo utópico, que preconizava uma reforma da sociedade. Comte se propôs a dois objetivos básicos: a elaboração de uma sociologia -- disciplina criada por ele e à qual pensou dar o nome de "física social" -- sobre a base exclusiva do estudo científico dos dados da experiência, e a reorganização das ciências de acordo com o mesmo critério.
A doutrina de Comte, exposta no Cours de philosophie positive (1830-1842; Curso de filosofia positiva), baseou-se na chamada lei dos três estados ou etapas do desenvolvimento intelectual da humanidade. O primeiro estágio é o teológico, no qual o homem explica os fenômenos da natureza mediante o recurso a entes sobrenaturais ou divindades, e cuja fase superior é o monoteísmo. No segundo estágio, o metafísico, não se interpreta o mundo sensível em função de seres exteriores a ele, mas apela-se para forças ou conceitos imanentes e abstratos (formas, idéias, potências, princípios). Por último, no estado positivo, o homem se limita a descrever os fenômenos e a estabelecer "as relações constantes de semelhança e sucessão entre eles". Nesse estágio, que é o da filosofia positiva, não se pretende achar as causas ou a essência das coisas, mas descobrir as leis que as regem, já que a filosofia está "destinada por sua natureza não a descobrir, mas a organizar".
O objetivo básico da filosofia positiva é, pois, a ordenação e a classificação das ciências. Comte estabeleceu uma pirâmide de seis ciências puras, na base da qual se encontrava a matemática -- única ciência que não pressupõe as demais -- seguida da astronomia, física, química, biologia e sociologia. Todas seriam regidas pelo mesmo método descritivo, e cada uma delas utilizaria os dados proporcionados pelas precedentes. Comte estabelecia assim o princípio da unidade da ciência.
No Discours sur l'ensemble du positivisme (1848; Discurso sobre o conjunto do positivismo), Comte incumbiu-se de relacionar os diversos sentidos da palavra "positivo": relativo, orgânico, preciso, certo, útil, real. No mesmo ensaio, parte dessas características do positivo para chegar a uma significação moral e social mais ampla, de reorganização da sociedade, com predomínio do coração e dos sentimentos sobre a razão e a atividade, cujo ápice é a religião da humanidade. O positivismo contém assim uma teoria da ciência, uma doutrina de reforma social e uma religião.
Uma segunda fase na vida do criador da doutrina positivista inicia-se com o predomínio dos propósitos práticos em detrimento dos teóricos ou filosóficos, fase da qual é bem representativo o seu Système de politique positive (1851-1854; Sistema de política positiva). Constitui-se então a chamada "religião da humanidade", com ídolos, novo fetichismo, sociolatria, sociocracia, sacerdotes, catecismo, tudo confessadamente muito próximo do catolicismo. Assim, o positivismo assume a condição de um credo baseado na ciência, que não exclui a abertura de templos e a prática de culto. Os aspectos religiosos do positivismo se encontram tratados em Le Cathécisme positiviste (1852; O catecismo positivista).

Ortodoxos e heterodoxos. Os adeptos do positivismo dividiram-se em dois grupos antagônicos: os ortodoxos, que acompanharam Comte em sua fase religiosa; e os heterodoxos, que se mantiveram fiéis somente à primeira fase, de cunho científico e filosófico. Na França, Émile Littré, autor de Fragments de philosophie positive et de sociologie contemporaine (1876; Fragmentos de filosofia positiva e sociologia contemporânea), líder dos heterodoxos, considerou a segunda fase de Comte como um retrocesso, que entrava em conflito com a primeira e a renegava. Pierre Laffitte, ortodoxo, foi o continuador da pregação e sacerdote máximo da religião da humanidade.
Embora muito criticadas porque excluíam elementos próprios da investigação científica, como o método hipotético-dedutivo, as teorias de Comte tiveram grande número de seguidores. Assim, por exemplo, o utilitarismo britânico, cujo principal representante foi John Stuart Mill, e o pragmatismo americano sofreram decisiva influência da doutrina positivista. Foi, entretanto, o chamado positivismo crítico, centrado na teoria da ciência, que inspirou o desenvolvimento posterior da doutrina.

Positivismo crítico e positivismo lógico. Com o nome de positivismo crítico se conhecem as teorias enunciadas pelo pensador alemão Richard Avenarius, que chamou seu sistema de empiriocriticismo, e o austríaco Ernst Mach. Ambos sustentavam que todo conhecimento consiste unicamente na organização conceitual e na elaboração dos dados da experiência proporcionados pelos sentidos, isto é, pelas sensações. Negavam, assim, não só conceitos especulativos, como o de substância, mas também hipóteses científicas, como o espaço absoluto, postulado por Newton.
As leis do positivismo crítico, junto com as formulações lógicas de pensadores como o alemão Gottlob Frege, o britânico Bertrand Russell e o austríaco Ludwig Wittgenstein, autor do fundamental Tractatus logico-philosophicus, deram lugar ao positivismo lógico, também chamado neopositivismo. Seu núcleo fundamental foi o Círculo de Viena, integrado entre outros pelos alemães Moritz Schlick e Rudolf Carnap e o austríaco Otto Neurath, cujas teorias foram expressas no manifesto Wissenschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis (Concepção científica do mundo: o círculo de Viena). Nele sustentavam que a lógica, como ciência formal da representação simbólica, é autônoma em relação às ciências empíricas, e que só estas podiam proporcionar informações sobre a realidade. O objeto da análise filosófica seria estabelecer a verificação lógica das proposições da ciência e eliminar aquelas pseudoproposições com sentido aparente, mas baseadas em enunciados metafísicos não-demonstráveis. A validade de um enunciado não-contraditório e suscetível de verificação experimental seria objeto exclusivo das ciências empíricas.
O positivismo lógico foi duramente criticado por pensadores como o austríaco Karl Popper, que considerou que o critério positivo de verificação impedia a elaboração de hipóteses, fundamentais para a ciência. Muitas das idéias dos positivistas lógicos, entretanto, continuaram em discussão. Suas análises sobre o significado das proposições e as relações entre as ciências formais e as empíricas foram, de qualquer forma, fundamentais para a evolução posterior da filosofia analítica.
Positivismo no Brasil. A história do positivismo no Brasil tem importância especial para a evolução das idéias no país. Foi sob o patrocínio do positivismo que, em grande parte, se fez a preparação teórica da implantação da república. Vários dos mais destacados propagandistas republicanos eram positivistas e, nos primeiros anos que se seguiram à queda do império, ocuparam posição de relevo na administração pública. Foi importante a influência intelectual e política de Benjamin Constant, positivista e republicano. A divisa Ordem e Progresso, da bandeira nacional, inspirou-se no conceito elaborado por Comte de uma sociedade exemplar, que teria "o amor como princípio, a ordem como base e o progresso como fim".
A ação do positivismo no Brasil lançou-se contra a posição filosófica de base espiritualista, então a única existente. Nesse combate, estava o positivismo ao lado do materialismo e do evolucionismo, que tinham lugar destacado entre os pensadores da época. A influência positivista, que foi preponderante nessa fase de renovação das idéias filosóficas no Brasil, começou a estender-se, a princípio, por meio de brasileiros que estudaram na França, alguns discípulos do próprio Comte. Depois, alargou seu campo em virtude de teses que diversos professores defenderam em escolas superiores, como a de Luís Pereira Barreto, As três filosofias (1874-1876).
O centro principal de irradiação da doutrina foi a cidade de Recife, por intermédio da chamada "escola de Recife", cujo iniciador, Tobias Barreto, tomaria posteriormente outros caminhos no domínio do pensamento. O mesmo ocorreu com outros dois vultos eminentes do grupo, Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua. A conversão de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, que desenvolveram grande atividade no setor do apostolado, foi importante para a expansão da doutrina no Rio de Janeiro. Nessa cidade foi instalada a igreja e o Apostolado Positivista no Brasil, em 1881. No Brasil, o positivismo passou de ciência a doutrina de influência geral, acolhida por limitado número de estudiosos, como Ivan Lins, mas sem a força dinâmica que o caracterizava nas últimas décadas do século XIX.

Proclamação da República teve influência positivista 
Pintura de Henrique Bernardelli representa a proclamação da República pelo marechal Deodoro da Fonseca: Comte nos quartéis. Foto: Reprodução/Lula Rodrigues
Pintura de Henrique Bernardelli
representa a proclamação da República
pelo marechal Deodoro da Fonseca:
Comte nos quartéis.
Foto: Reprodução/Lula Rodrigues
O projeto sociopolítico de Comte pressupunha uma evolução ordeira da sociedade, incompatível com revoluções e mudanças bruscas. Curiosamente, no Brasil os ideais positivistas serviram para alavancar uma troca de regime, com a proclamação da República. O aparente paradoxo se explica, em parte, pelo fato de a influência positivista ter resultado em pensamentos muito diversos no Brasil, conforme se combinou com outras correntes ideológicas. Nenhum setor teve maior presença da ideologia comtiana do que as Forças Armadas, de onde saiu o vitorioso movimento republicano e a idéia de adotar o lema "ordem e progresso". Várias das medidas governamentais dos primeiros anos da República tiveram inspiração positivista, como a reforma educativa de 1891 e, no mesmo ano, a separação oficial entre Igreja e Estado. O positivismo ficou de tal forma conhecido no Brasil que o prenome de Comte foi aportuguesado para Augusto e a corrente filosófica tornou-se tema de um samba de Noel Rosa e Orestes Barbosa. A canção, intitulada Positivismo e lançada em 1933, termina com os versos: "O amor vem por princípio, a ordem por base/O progresso é que deve vir por fim/Desprezaste esta lei de Augusto Comte/E foste ser feliz longe de mim".


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