por José Caldas da Costa Após o golpe de 1964, mais de mil militares foram expulsos do exército, da marinha e da aeronáutica. De praças a oficiais, todos foram acusados de subversão. Obrigados a deixar as Forças Armadas, também não podiam trabalhar em outras profissões. “Treinam o homem como soldado e depois que o imprensam contra a parede, ele reage. Até um rato reagiria, quanto mais um soldado”, resume o sargento do exército Araken Vaz Galvão. Dois anos depois, ele participaria da primeira insurgência armada contra o regime militar, a guerrilha do Caparaó. Viveram a crise do suicídio de Getúlio Vargas, a tensão da tentativa de derrubada de Juscelino Kubitschek e estavam na Campanha da Legalidade (ver Glossário) levantada pelo governador do Rio Grande do Sul Leonel Brizola. O marechal Henrique Lott, então ministro da Guerra, criara uma política de promoção para incentivar os estudos e muitos sargentos aproveitaram bem a oportunidade. Inicialmente, lutaram por melhorias das condições de trabalho, o que os levou à fundação do Movimento dos Sargentos sob o lema “Sargento também é povo fardado”. Aproximaram-se dos ferroviários, categoria mais organizada entre os trabalhadores do Rio de Janeiro, e das entidades estudantis. Conseguiram aumentar sua participação política, iniciando os anos 60 com uma nova legislação eleitoral que permitia a candidatura de sargentos a mandatos eletivos. | ||||||
Em cada uma das três forças – exército, marinha e aeronáutica – as organizações de sargentos estavam fortalecidas. Logo os marinheiros também criaram sua associação. Cada grupo desses pretendia melhorar suas condições de vida. Os marinheiros, por exemplo, lutavam por direitos básicos, como casamento, tratamento humanizado, uso de trajes civis etc. A corrente de oficiais de direita, insensível a essas reivindicações, interpretava-as como infrações disciplinares. O discurso de combate ao comunismo crescia nos setores mais conservadores da sociedade e dos militares, criando uma aliança perfeita para um golpe, sob patrocínio dos Estados Unidos, então preocupados com o crescimento da influência cubana na América Latina. Quando o general Mourão Filho partiu com uma pequena tropa de Juiz de Fora (MG) rumo ao Rio de Janeiro, precipitando o golpe, a direita militar não estava devidamente mobilizada, mas a indecisão do governo para reagir à insubordinação facilitou a tarefa dos insurgidos. João Goulart deposto, logo o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco estaria na cadeira de presidente. Seguiram-se prisões, expulsões, torturas e morte dos que se posicionavam contra os novos interesses. As primeiras vítimas do regime militar foram os sargentos e os marinheiros. Bastava não concordar com a solução imposta pelo golpe para ser considerado comunista e inimigo do povo. | ||||||
Sob a liderança de Amadeu Felipe da Luz Ferreira, os sargentos estavam convencidos de que não havia outra maneira de resistir a não ser através da guerra de guerrilhas, adotando princípios do francês Régis Debray – princípios que ele depois rejeitaria. O cenário internacional contribuiu muito para essa avaliação: naquele momento, o revolucionário Ernesto Che Guevara pregava a reação à crescente intervenção americana na América Latina com a criação de “milhares de Vietnãs”. Ou seja, focos guerrilheiros capazes de desestabilizar qualquer regime. Enquanto os sargentos reagrupavam-se clandestinamente, os jovens da organização Polop (Política Operária) também planejavam enfrentar o regime pela luta armada. Escolheram o vale do rio Doce, onde pensavam ser possível atingir em cheio a Estrada de Ferro Vitória–Minas. Chegaram a visitar a serra do Caparaó, fazendo estudos para uma ação futura, mas a tentativa foi abortada ainda na fase de planejamento, com a prisão de seus líderes em um apartamento em Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro. Na organização da resistência, os militares expulsos decidiram buscar apoio no Uruguai, onde Leonel Brizola e o ex-presidente João Goulart estavam exilados. Os sargentos aproximaram-se de Brizola durante a Campanha da Legalidade e queriam tirar proveito dessa amizade. Criaram o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), mas o líder gaúcho não tinha a menor simpatia pela guerrilha e acreditava mais no controle que teria sobre as Brigadas Militares do Rio Grande do Sul. Por duas vezes, os sargentos tentaram realizar levantes no estado e fracassaram. Cobraram de Brizola o cumprimento da promessa de apoiá-los na incursão foquista caso o levante não desse certo. | ||||||
Após uma tentativa abortada de instalar-se na serra do Mar, em Santa Catarina, o grupo partiu para a serra do Caparaó, entre o Espírito Santo e Minas Gerais. Uma engenhosa operação transportou as armas do sul até o sudeste por ônibus, trem e até em uma Kombi da Kellog’s. Os guerrilheiros foram chegando em pequenos grupos ou individualmente, a partir de meados de junho ou julho de 1966, e instalaram-se em uma propriedade da família do sargento pára-quedista Anivanir Martins Leite, em São João do Príncipe, Iúna (ES). Simulariam uma criação de cabras. Quando começaram as operações de reconhecimento da região, os guerrilheiros foram surpreendidos com a notícia da morte, sob tortura, de um de seus antigos líderes, o sargento Manoel Raimundo Soares. Ele havia sido preso em março, em Porto Alegre, logo após a segunda tentativa frustrada de levante, e foi assassinado com as mãos amarradas em agosto de 1966, nas águas do rio Jacuí, que deságua no lago Guaíba. A direção em Caparaó era oriunda do exército: o sargento Amadeu Felipe da Luz Ferreira no comando militar, tendo como subcomandantes o sargento Araken Vaz Galvão e o subtenente Jelcy Rodrigues. Um dos primeiros a chegar foi um civil, o gaúcho Milton Soares de Castro. Integraram-se Avelino Capitani, Edival Mello e Amaranto Jorge Rodrigues, todos da marinha e treinados em Cuba. Estavam ainda no grupo o sargento da Aeronáutica Josué Cerejo Gonçalves, o sargento marinheiro Jorge José Silva, o marinheiro João Jerônimo da Silva e o sargento do exército Daltro Jacques Dornellas, além de três pessoas da família dele: o também sargento Dirceu Dornellas, que dava retaguarda na cidade, seu pai Afonso e seu irmão mais novo, Luiz Carlos, que operaram um armazém de apoio em Guaçuí (ES). Dário Viana Reis, primeiro-tenente do exército, emprestou a propriedade onde foram escondidas as armas no Rio Grande do Sul, antes de serem conduzidas ao Caparaó. O capitão Juarez Alberto de Souza Moreira ajudou a escolher a região e abastecia a guerrilha com alimentos transportados num jipe com placas de Nilópolis (RJ). | ||||||
O comando urbano era do presidente do proscrito PSB, professor Bayard Demaria Boiteux, que recrutou como colaborador direto o estudante de direito Amadeu Rocha. Eles eram responsáveis pela ligação com o Uruguai, onde tinham o apoio de Paulo Schilling junto a Brizola.Mais tarde, ligou-se a este comando o ex-bancário Hermes Machado Neto, que também foi preparado pelo regime cubano. Ele esteve na serra como observador de Amadeu Rocha. Nas primeiras semanas, o grupo era maior, com o civil Gregório Mendonça, o professor Alfredo Néri Paiva, treinado em Cuba, o subtenente Itamar Maximiano Gomes e os sargentos José Carlos Bertoncellos e Pedro Espinosa. Alguns desistiram logo, ao perceber como era dura a tarefa de empreender uma guerrilha. O sargento Deodato Fabrício Batista participou do movimento ainda na ativa. Pouco a pouco, os guerrilheiros fizeram incursões de reconhecimento da serra e fixaram depósitos de comida e armamentos em pontos estratégicos. Precisavam prevenir-se para as ações, que chegaram a ser planejadas para a cidade mineira de Presidente Soares – hoje Alto Jequitibá –, mas não foram executadas. Esta primeira fase visava à adaptação. Pretendiam, em seguida, atuar para chamar a atenção do país para o fato de haver uma insurreição contra o regime. De acordo com a teoria do foco guerrilheiro, a partir daí outros grupos se levantariam e, em pouco tempo, os militares teriam de ceder ao clamor da nação por liberdade. | ||||||
Alguns contatos foram feitos com moradores da região, na tentativa de ganhá-los para a causa. Mas descobriram uma população alheia ao regime de arbítrio, resignada com as difíceis condições de vida na região e mais preocupada com a sobrevivência do que com as grandes questões políticas nacionais ou internacionais que moviam os combatentes. Em vez de conquistar, a movimentação dos guerrilheiros gerou desconfiança nos habitantes do local. Quando começou a faltar o dinheiro de Cuba, a fome se abateu sobre o grupo, que até ovo choco comeu. Com a instalação do armazém de Guaçuí (ES) a situação foi regularizada, mas estrago já estava feito. Para piorar, havia um inimigo invisível: os ratos da serra, transmissores da peste bubônica. Eles invadiam os depósitos de comida e urinavam, tornando os alimentos mal cozidos focos de contaminação. Após algum tempo, começaram a aparecer os sintomas da doença. A convivência no grupo também estava ruim. Algumas divergências surgiram. Parte havia desistido da missão logo no início, retornando às cidades. Em uma das reuniões, o subcomandante Galvão chegou a questionar se seria com 14 homens que eles pretendiam derrubar o regime. Convicto, Amadeu Felipe reafirmou a teoria do foco: “Se acendermos um pequeno fogo que desperte a nação, já teremos cumprido a missão”. No Natal de 1966, a instabilidade aumentou. A tradição cultural falou alto. A doença começou a minar a resistência dos guerrilheiros. O grupo foi se reduzindo até chegar a dez homens no último mês na serra, em março de 1967. | ||||||
Na volta de uma viagem ao Rio de Janeiro, o subcomandante Jelcy Rodrigues comunicou a Amadeu Felipe que abandonaria a missão. Os dois discutiram a questão um dia inteiro. Rodrigues venceu. Um dos sargentos, Josué Cerejo, descobriu a intenção do subcomandante e decidiu acompanhá-lo. Em 23 de março, os dois desceram a serra para embarcar no trem em Espera Feliz (MG), para o Rio de Janeiro, mas chegaram tarde demais à estação. Decidiram seguir de ônibus e, enquanto esperavam, foram a uma barbearia. Um pelotão da Polícia Militar de Minas Gerais cercou o estabelecimento e prendeu os dois guerrilheiros. Há dias a polícia os vigiava, alertada por moradores da região de Pedra Menina, no Espírito Santo. Foram conduzidos sigilosamente e entregues ao exército, em Juiz de Fora (MG). Na mata, a saúde de Avelino Capitani, infectado com peste bubônica, deteriorava-se rapidamente. Jerônimo também já começava a demonstrar sintomas da doença. Amaranto Jorge, seu antigo colega de farda na marinha, enfrentou o comando e resolveu descer à noite a Alto Caparaó (MG) para comprar remédio. Foi denunciado pelo próprio farmacêutico que o atendeu e preso ao amanhecer do dia 29 de março, quando tentava chegar de volta à serra. Dois dias depois, a polícia mineira identificou o acampamento do grupo, invadido na manhã seguinte. Os ratos funcionaram como agentes secretos da repressão, minando a saúde daqueles que haviam ousado lutar contra o regime dos generais. O grupo de apoio urbano, alertado por informantes de que Jelcy Rodrigues estava preso, resolveu partir para a região para ajudar os remanescentes. Liderados por Amadeu Rocha, os combatentes Leonor Tuasco, Deodato Fabrício, Gregório Mendonça e Itamar Maximiano foram levados em uma Kombi pelo supervisor de vendas Edson José de Souza. De ônibus, foram Hermes Machado e o capitão Juarez. | ||||||
A região estava tomada pelas forças de segurança. Leonor caiu doente e Edson retornou com ele. Juarez e Gregório, em uma incursão de reconhecimento, acabaram cercados. Tentaram reagir e foram baleados, o que alertou o grupo para a gravidade da situação. Os demais conseguiram escapar, mas foram presos mais tarde ao tentar embarcar de volta para o Rio de Janeiro na BR 116. Nos dias seguintes, ao mesmo tempo em que as autoridades militares procuravam minimizar o episódio, atribuindo aos combatentes a pecha de “bandoleiros ladrões de gado”, o exército invadiu a região com mais de 3 mil homens e bombardeou a serra à procura de remanescentes da guerrilha. Os órgãos de segurança prenderam dezenas de pessoas na região, principalmente em Manhumirim (MG), acusando-as de terem colaborado com os militantes. Os guerrilheiros do Caparaó ficaram devendo a vida ao seu primeiro carcereiro, o comandante do Batalhão da PM de Minas Gerais em Manhuaçu, coronel Jacinto Franco do Amaral Melo, que os apresentou à imprensa e mandou fotografá-los vivos antes de entregá-los ao exército para uma reconstituição, onde corriam o risco de ser assassinados em uma simulação de conflito. Menos de um mês depois, porém, um dos militantes, o operário Milton de Castro, apareceu morto em uma cela da penitenciária de Linhares, em Juiz de Fora, após um interrogatório. A versão oficial foi de que Castro teria se enforcado na torneira do chuveiro, a pouco mais de um metro do chão
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quinta-feira, 3 de junho de 2010
Caparaó: A primeira guerrilha contra a ditadura
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Meus parabéns pelo blog e pelo texto muito esclarecedor!
ResponderExcluirAgradeço também por seguir o meu blog! :-)